Resenhas, artigos e contos

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Formação como Leitor #02 - Um olhar enviesado para a literatura

Um leitor se caracteriza por sua natural atividade: o ato de ler. Fora isso, temos um leitor mais casual, aquele que não exerce a leitura espontaneamente e apenas se lembra dela quando, de alguma forma, os livros chegam até ele. Portanto, a busca pela leitura é uma característica intrínseca do indivíduo que chamamos de leitor. 

Transplantemos essa definição para um momento delicado no que toca a formação de leitores pré-adolescentes. Ora, o leitor não estará em processo de formação se ele não se dispuser a buscar ou simplesmente receber a literatura. E para a ocorrência disso é necessário que esse pré-adolescente visualize o livro como um objeto necessário a sua rotina, ou melhor ainda, que o livro lhe proporcione algum tipo de prazer. Mas para que essa situação aconteça é imprescindível a qualidade de um fator: a recepção, o modo como os livros serão apresentados a ele.

Feito essa introdução, vamos ao meu relato. Como já contei na primeiro "capítulo" dessa coluna, tive uma boa interação com os livros na infância, apesar de minha família não ter qualquer gosto pela literatura. Aos dez anos de idade eu era o tipo de leitor não espontâneo, apenas lia o que me era apresentado e não desenvolvia sede voraz pela leitura. E como já disse, a família não criava qualquer incentivo nessa área, nem mesmo um livro eu ganhava de presente. Sendo assim, o único contato possível com os livros deveria acontecer na escola, e aconteceu, mas não de uma forma muito estimulante. Por que não? Simples. As aulas de literatura nas escolas são marcadas pela obrigação. Se você não ler determinado livro não conseguirá realizar a prova de interpretação ou apresentar algum trabalho. Na verdade, essa obrigação não chega a ser intensa no ensino fundamental, mas de qualquer forma o aluno se sente cobrado a ler um livro para, frise bem, passar de ano. O que aconteceu com o tal do "prazer pela leitura"? Ele não desapareceu, ainda está lá, só que de uma forma muito velada, quase fora de foco para dar passagem a uma atividade, muitas das vezes até "mecanizada", regida pelo sistema de ensino. Só nesse problema, a literatura - e o leitor - recebe um golpe quase mortal. 

Agora vamos a uma segunda questão que me incomodou bastante do 6º ao 9º ano (na minha época, 5º a  8º série): a escolha dos livros paradidáticos. Minhas leituras na 5º série se resumiram a uma versão adaptada de O Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda e A Turma dos Tigres: Mistério em Veneza. Preciso confessar que são excelentes títulos e me agradaram muito quando os li, afinal ambos casavam com o tipo de história que gostava (e ainda gosto) de acompanhar. Sobre a adaptação do Rei Artur, creio que é difícil alguém não gostar dessa história, logo dispensa comentários. Já o segundo me lembrou muito a série Salve-se Quem Puder que comentei no texto anterior, pois continha basicamente os mesmos elementos: era um suspense policial protagonizado por adolescentes, e em cada capítulo havia um tipo de desafio ao leitor. Portanto, mantive uma boa relação com os livros naquele ano. Mas não posso dizer a mesma coisa dos seguintes. Nem eu mesmo tenho certeza se o próximo parágrafo conterá uma totalidade verídica. Isso é apenas uma autoinvestigação que procura se aproximar o máximo possível de minha relação com os livros naquela época.


O contraste de gênero entre os livros adotados no 6º ano e nos anos posteriores foi significativo. De histórias de heróis medievais e suspense policiais juvenis a meramente ficções realistas focadas em problemas adolescentes. Não havia mais fantasia ou qualquer outro tipo de literatura de gênero; era apenas o cotidiano protagonizado por jovens cujos problemas sempre se resumiam a drogas, bebidas, hormônios aflorando, pobreza e outros temas bem sociais e realistas. A questão era: eu me identificava com esses personagens? NÃO! Apesar de ter lido TODOS esses livros e realizado as tais provas de interpretação e outros trabalhos, eu não sentia grande proximidade com os personagens e nem com a história em si. Eu poderia ter lido um ou dois desses livros, mas VÁRIOS? Não era o tipo de enredo que me apetecia. Na época, eu teria sido feliz se caísse em minhas mãos algum livro de fantasia, ficção científica ou romance policial, pois são gêneros que mexem bastante com o imaginário e atraem facilmente os mais jovens. Então por que eu mesmo não fui procurar pelos livros de tais gêneros? Simples. Vivemos numa era de cultura de massa onde diversas mídias artísticas demonstram presença. O tipo de aventura que eu não encontrava nos livros, encontrava nas histórias em quadrinhos, nos filmes e nos desenhos animados (especialmente nos animes). Ressalto que minha família não era ledora, que eu era (e ainda sou) integrante de uma classe baixa, que não havia bibliotecas e livrarias próximas de casa, e que não havia essa facilidade que a internet hoje dá aos novos leitores de explorarem os títulos do mercado. Então é fácil entender que escolhi aquilo que esteve mais próximo de mim, pois os filmes, jogos de videogames e desenhos animados sempre estiveram facilmente à disposição de qualquer um com uma televisão, um video-cassete (será que alguém ainda sabe o que é isso?) e um console. Foi esse o começo da história de minha separação com os livros. 

A literatura não oferecia aquilo que eu queria, mas outras mídias sim. E assim eu comecei a olhar o significado de literatura com outros olhos, com um olhar enviesado. Na verdade, a relação com os livros se tornaria ainda mais estreita. Na próxima postagem, contarei minha experiência (ou trauma) com a literatura no ensino médio.