Resenhas, artigos e contos

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[Resenha] A Zona Morta, de Stephen King

Editora: Objetiva
Ano: 2009 (originalmente em 1979)
Páginas: 610
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Sinopse: Jonny Smith é um simplório professor secundário, acorda de um coma de cinco anos aparentemente sem sequelas, a não ser por uma área de seu cérebro danificada, que o impede de reconhecer certos objetos. Os médicos dão a essa área o nome de zona morta.
Mas a zona morta abriga muito mais do que memórias esquecidas. Por conta dela, Johnny desenvolve o poder de prever o futuro. Isso também é sua condenação - nela cresce um tumor que rapidamente suga suas energias.
Após conhecer Greg Stillson, um inescrupuloso candidato a deputado, Johnny tem terríveis visões do político como presidente dos Estados Unidos e o país mergulhando numa guerra nuclear. Perturbado, ele terá que enfrentar o difícil dilema: sofrer em silêncio, sabendo das tragédias que virão, ou matar Stillson, numa desesperada tentativa de impedir a catástrofe prenunciada.



Resenha

Meu primeiro contato com essa história se deu há alguns anos através do seriado de TV, o qual era fã e não perdia um único episódio. Em seguida, sabendo da existência de um filme lançado na década de 80 e do romance que deu origem tanto ao seriado quanto ao filme, decidi, ainda em meados de 2006, conferir a adaptação cinematográfica e a obra original. Na época, consegui achar o DVD do filme, mas o livro só pude adquiri-lo em sebo: uma edição bem antiga, de papel amarelado e cheiro arcaico. No final das contas, não consegui ler o romance por completo. Mas, enfim, anos depois, compro um novo exemplar de uma edição  de bolso e concluo a leitura desse ótimo romance de Stephen King. Aliás, é o primeiro livro que leio do autor considerado um mestre de suspense e terror. Porém, A Zona Morta, acredito, é um trabalho à parte de todo o repertório que lhe condecora com essa alcunha literária, pois, mantendo-se o teor de suspense, em lugar do terror, temos drama e outros gêneros mesclados na história.

O prólogo do livro é dividido em duas cenas, uma dedicada ao protagonista (Johnny Smith) e outra ao antagonista (Greg Stillson). Esse começo já deixa claro que o desenvolvimento da trama avançará para uma futura colisão entre os personagens, que, na verdade, se encontram em contextos bem diferentes durante boa parte da história. No tocante à estrutura da trama, o autor costura lentamente os caminhos que irão fazer o protagonista e antagonista se cruzarem, sendo essa característica interessante para criar o suspense e aumentar a tensão entre os personagens. Ademais, essa mesma técnica é utilizada em relação a outros antagonistas secundários, como o maníaco de Castle Rock e o imprecavido dono de um bar, durante o desenvolvimento da história: cenas relacionadas a esses personagens são apresentadas, e futuramente Johnny passa a participar dos eventos.

A história tem seu início antes do acidente que culminou no coma de Johnny Smith e que eventualmente lhe trouxe seus poderes premonitórios. Esse período pré-trágico será relembrado em diversos momentos no futuro tanto por Johnny quanto por Sarah, e é importante percebermos o que os pequenos atos corriqueiros podem ocasionar. Ambos os personagens lamentam a todo instante que se não fosse por tal coisa, o acidente nunca teria acontecido. Sarah, por exemplo, se não tivesse comido o cachorro-quente estragado ou tivesse deixado Johnny dormir em sua casa, ele não teria pego o táxi (e se o taxista não ficasse discutindo os problemas de sua vida enquanto dirigia) o acidente de Johnny nunca teria acontecido, e, consequentemente, o casal poderia ter tido uma vida feliz em vez de viverem separados - Johnny, solitário; e Sarah, casada e com um filho. Coisas pequenas, e não nos damos conta disso (e nem há como), decidem o nosso futuro.

Stephen King trabalhou o protagonista de maneira que simpatizemos com ele, compartilhando todos os agouros e problemas de sua condição pós-coma, desde o fato de ter perdido cinco anos de sua vida nesse tempo, ter perdido a mulher que amava, as frequentes operações para que pudesse novamente andar e usar os membros do corpo, as premonições, sua relação com as pessoas devido ao seu dom (alguns chamam de benção, mas ele vê isso como uma maldição), e também (outro aspecto interessante da história) o assédio da Imprensa por ele ser um paranormal.

Quando a notícia de que Johnny Smith previu um incêndio na casa de um das enfermeiras que cuidava dele chegou à Imprensa, repórteres pipocaram no Hospital onde Johnny se recuperava. Há uma entrevista coletiva e até mesmo um repórter ousado que solicita uma demonstração dos poderes de Johnny, claro, para tentar provar que ele é um farsante. Mas, não apenas repórteres correm atrás de Johnny, pessoas comuns lhe enviam cartas com algum objeto pessoal (já que os poderes de Johnny só funcionam mediante o toque com algum objeto ou pessoa) para que ele responda alguma coisa; são pessoas desesperadas que acreditam piamente na habilidade sobrenatural de Johnny. A cena mais "divertida" nesse contexto foi a visita de um agente de uma revista que queria convidar Johnny a escrever alguns artigos sobre suas visões (como quem vai ser o próximo presidente dos EUA), mas, no meio da conversa, Johnny descobre que o homem não está fazendo isso porque acredita em suas "habilidades", e sim porque acha que é um aproveitador (e o elogia por isso, pois pessoas assim são espertas e sabem como ganhar dinheiro) e que os leitores irão acreditar em tudo o que ele escrever pois realmente crêem que ele seja um paranormal. Johnny, literalmente, chuta o cara da revista para fora de casa.

Mas não é apenas em Johnny Smith o foco da história. King alterna cenas protagonizadas por outros personagens, como Greg Stillson, Sarah, Herb Smith (pai de Johnny), Weizack (médico responsável por Johnny) e outros. Muitos deles possuem um panorama, embora não tão cativante quanto o protagonista, interessante. Sarah tem seu coração bipartido entre Walter (seu atual noivo) e Johnny. Herb tem de lidar com os problemas de fanatismo religioso (outro assunto bem abordado na história) de sua mulher e com a preocupação em relação ao filho que acorda do coma. Greg Stilson é um sujeito inescrupuloso, do tipo boa pinta em público, que abusa de todos os métodos ilegais para subir na vida, um personagem forte e que causa grande temor em todos os que se colocam em seu caminho (isso deixa a expectativa de sua colisão com Johnny Smith ainda maior). É um vilão interessante, usado como crítica política. Na verdade, nenhum eleitor leva Greg Stillson a sério, mas como estão tão desacreditados na política, preferem eleger um bobo da corte do que um corrupto.

Vale um parágrafo para discorrer sobre Vera Smith, mãe de Johnny, uma mulher religiosa antes mesmo do acidente do filho. Sua fé atingiu proporções preocupantes durante os anos em que Johnny esteve em coma, um tipo de fé que cega a pessoa e a deixa vulnerável a qualquer enganação de aproveitadores. Vera chega até mesmo a acreditar em discos voadores como mensageiros de Deus ou que a terra prometida se encontra abaixo da Antártida, ambos os fatos veiculados através de uma revista de cunho religioso que é claramente pura enganação (se não me engano, a mesma que tentou persuadir Johnny a escrever para ela). É triste ver que esse fanatismo vai aos poucos minguando sua relação com o marido que, diga-se de passagem, é um homem muito fiel à esposa, pois não a abandona apesar desse problema. A situação torna-se ainda pior quando Johnny acorda e Vera coloca na cabeça que o filho foi designado para uma missão divina, que ele tem algo muito importante para fazer no mundo (de fato, ele precisará deter o Apocalipse gerado por Stillson).

Há também dois detalhes interessantes e específicos que consegui discernir: Jekyll e Hyde e a Roda da Fortuna. Essas foram as duas principais imagens que permearam significativamente o enredo, ambas apresentadas logo ao início do livro. Realmente espetacular a capacidade do King de usar esses dois eventos aparentemente banais e metaforizá-los ao longo da história. 

A primeira ocorre quando Sarah, namorada de Johnny, que leciona junto com ele na escola, visita seu apartamento e se assusta quando o professor surge diante dela com uma máscara à la Jekyll e Hyde (O Médico e o Monstro - obra clássica do gênero de horror). Nessa cena, a narrativa explicita sutilmente que há alguma coisa dentro de Johnny, algo que deixa Sarah temerosa. Posteriormente, todos aqueles que se aproximassem de Johnny em determinadas situações seriam capazes de vislumbrar o "monstro" que ele escondia: o Johnny que é capaz de prever o futuro. E corroborando o lado Hyde do personagem, nos momentos de suas premonições, a tonalidade de seus olhos muda para um azul forte (ou lilás, não me recordo). Infelizmente, não tenho como ir mais além nesse parágrafo porque não li O Médico e o Monstro, pois, provavelmente, conseguiria depreender outras referências.

A Roda da Fortuna é uma alegoria simbólica das mudanças que estão prestes a ocorrer na vida, representa a atuação da força do destino sobre o indivíduo. Na trama, Johnny e Sarah param numa barraca de jogo de roleta enquanto se divertem no parque de diversões. Nessa cena, Johnny dá seu primeiro sinal de clarividência ao acertar todos os números sorteados pela Roda da Fortuna. Ele ganha uma boa quantia nessa brincadeira, decrescendo o lucro que a banca conseguira naquela noite. No entanto, posteriormente, a sorte que o beijou na banca revirou-se na tragédia que o levaria ao coma. Se não tivesse parado naquela barraca, sua vida teria sido bem diferente, e até mesmo Sarah se culpa por ter passado mal devido a um cachorro-quente estragado naquela noite, pois se não houvesse comido, certamente não teriam passado de frente à barraca. A imagem da Roda da Fortuna, então, seria visto por Johnny como uma metáfora para um destino que ele deveria cumprir: ele só precisaria ganhar novamente da banca.

A narração ocasionalmente ressalta alguns aspectos sociais e geográficos das cidades e lugares onde os personagens frequentam, tornando a imersão no espaço um pouco mais profunda, sem abusar tanto das descrições desnecessárias. O que é bastante incômodo durante a leitura são as inúmeras menções a marcas famosas (ou nem tão tanto). Todavia, acredito que o autor não tenha as inserido com objetivo leviano; talvez ele quisesse representar um EUA abraçado ao capitalismo, pois a trama situa-se (e foi escrita) dentro do período da Guerra Fria, ou simplesmente quis dar um ar mais cotidiano à leitura para que os leitores americanos pudessem se familiarizar com o ambiente.

A Zona Morta é um romance rico em muitos aspectos, uma leitura de ritmo frenético e cativante logo nas primeiras páginas (o meio da história é demasiado lento) e um desfecho sensacional. Tomaria mais alguns parágrafos para explorar cada detalhe da história, mas suscitando o que havia dito no início do texto, drama e suspense permeiam esse romance. Mais do que isso, a história tem um clima forte e original para ser lembrada após o fim da leitura.

Adaptação para o cinema


Em 1983, quatro anos após o lançamento do livro, dirigido por David Cronenberg, The Dead Zone ganhou uma versão cinematográfica. O título foi traduzido para Na Hora da Zona Morta. Motivo? Não faço ideia. Tradutores adoram enfeitar ou distorcer os nomes originais dos filmes (exemplo, The Goodfather para O Poderoso Chefão; ou Saw para Jogos Mortais). É possível que tenha sido alvo de alguma "moda" que procurava nomear os filmes de suspense com "Na hora da" a exemplo do que ocorreu com Terror em Silent Hill e Terror em Amityville.

A versão de Cronemberg para o livro de King possui seus pontos positivos e negativos. A própria duração do filme foi um fator a desejar, pois um calhamaço de 600 páginas merecia bem mais que 100 minutos. Logo, houve muitos cortes e adaptações não condizentes com a história original. As imagens da Roda da Fortuna e de Jekyll e Hyde, já supracitadas, não apareceram no longa; a cena do parque, do acidente e do coma de Johny foram absurdamente menos intensas e significativas do que no livro. O filme só começa a melhorar no momento em que Johnny acorda do coma, pois, dessa forma, o longa aproveita o tom acelerado de seu desenvolvimento para não alongar a recuperação do protagonista que foi maçante no livro. Há outras inúmeras diferenças para o romance, incluindo uma sub-trama quase totalmente modificada no filme. Apesar das mudanças na história, a linha principal da narrativa se manteve; apenas o seu desenvolvimento se deu ora de maneira quase semelhante ora de maneira distinta da obra original.

Um detalhe positivo para o filme está na brilhante atuação de Christopher Walken como Johnny Smith. As fisionomias de alegria, sofrimento, transe e seriedade demonstradas pelo ator foram admiráveis e necessárias para tornar crível a imagem de Johnny Smith. A ambientação do filme também carrega todo o clima de suspense dramático das páginas do livro; destaque para a abertura que mostra cenários similares aos que são retratados na história, incluindo a sobreposição do nome "The Dead Zone" nas imagens como uma metáfora à zona morta de Johnny, que não consegue se lembrar de alguns lugares e objetos devido aos danos cerebrais recebidos no acidente. A trilha sonora que também toca na abertura em outros momentos do filme carrega o "feeling" perfeito da história.


 Adaptação para o seriado de TV

Foi o meu primeiro contato com essa história e minha série de TV preferida na adolescência. Acompanhava pela SBT (traduzido para O Vidente), pelo canal pago AXN, e eventualmente através de download. A abertura da série é uma das melhores que vi, principalmente a segunda versão que toca uma música mais épica.


O início do seriado, lançado em 2003, mescla a obra original de King e o filme de Cronenberg. Algumas alterações acabaram sendo necessárias para segurar a narrativa a fim de explorá-la por uma ou mais temporadas. É o caso do personagem Walt Bannerman, que foi a união do xerife, que Johnny ajudou na caçada ao assassino de Castle Rock, com o marido de Sarah, que encaminhava-se para uma vida política. As funções de cada um desses personagens são executadas por Walt, que é marido de Sarah e xerife de Cleaves Mills que requisita as habilidades de Johnny para resolver algum caso policial.

A presença de personagens fixos e exclusivos para o seriado e a ausência de outros importantes na obra original (como a mãe e o pai de Johnny) deixam a série menos fiel ao livro. Até mesmo as visões de Johnny são mais claras e objetivas. No entanto, funciona muito bem como seriado de TV, mesmo porque boa parte dos episódios é interessante, principalmente aqueles baseados na trama principal da história - o confronto entre Johnny e a apocalíptica visão dos EUA. A meu ver, um dos melhores foi o 12º episódio da 2º temporada, intitulado "Zion", que foi uma adaptação do verdadeiro final de Johnny Smith mostrado no livro.

As três primeiras temporadas do seriado mantiveram uma história bem consistente e interessante, indo muito além da obra de King. A trama referente ao Apocalipse ganhou uma nova roupagem na virada da segunda para a terceira temporada, dando ao enredo um bom leque de possibilidades. No entanto, a quarta temporada decepcionou em conteúdo, e a série foi lentamente perdendo o fio condutor da trama. Quando chegou a sua sexta temporada foi a gota d'água. Mudaram tão radicalmente o enredo que não havia mais como a história angariar a atenção do público, pois a audiência já havia caído de forma considerável nas últimas temporadas. Resultado: a série foi cancelada sem um final decente. Uma grande pena para os fãs.

Apesar disso, eu recomendo o seriado. Os episódios seguem aquele modelo de "uma história para cada episódio", e a maioria vale a pena. Particularmente, sou grande fã da série.

2 comentários

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Acho que a questão do nome é porque já tinham traduzido um "A hora do Vampiro" (Salem's lot) e um "A hora do lobisomen" (Cycle of the Werewolf).
Poisé, sei o que deve estar pensando D:

Balas
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Entendo. Mas "Na Hora da Zona Morta" ficou horrível :(

Balas