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Contemplem os dragões, os deuses do mundo que está prestes a se revelar, e um herege cuja jornada você irá acompanhar.
Muitas
estações antes do mundo provar a mortalidade de uma era sagrada, Seph Dracomir
tinha com os dragões a mesma relação que um menino tem por seu amigo
imaginário, a amizade íntima que nenhuma razão alheia consegue mensurar.
Essa
afeição alvorecia antes do nascer do dia, em terras oníricas posteriormente
relatadas em seu caderno de notas ultrassecreto. Ele dormia rodeado pela temática
desses sonhos. Entalhes na cabeceira da cama mostravam serpentes aladas
bailando nas nuvens, chamas e cores quentes inflamavam as cortinas de seda, garras
e asas delineadas meticulosamente com fino pincel ornavam as paredes de cor
pergaminho como se estivessem desenhadas em um livro de páginas ensebadas,
pinturas a óleo de cunho fantástico pendiam em molduras suntuosas; pequenas
esculturas de porcelana sobre a mobília vigiavam o quarto, enquanto a maçaneta
em forma de cabeça o guarnecia. Havia dragões por toda a parte. E quando Seph
abria os olhos, esses dragões pareciam ser muito mais que meros ornamentos,
pareciam receber os vestígios animados dos que estavam no universo onírico. Era
como se, mesmo acordado, pudesse estender só um pouquinho a sensação de sonhar.
Não
apenas o quarto, mas boa parte da arquitetura e decoração da mansão onde morava
tinha os dragões como referência. O ser mitológico era o símbolo dos Dracomir, uma
família cultuada desde eras longínquas segundo o Livro de Marduk, obra sagrada
da religião draconista. Seus membros detinham alto prestígio social e eram
respeitados como os mais nobres de toda a nobreza e os mais clérigos de todo o clero.
Seph,
dez anos, era o mais novo da família. Porém, a idade pouco importava quando se
era um Dracomir, pois o mundo lhe dava a mesma reverência que seus parentes
recebiam. Nunca aceitou muito bem a razão que restringia sua liberdade além dos
muros da mansão, algo como “Precisa manter sua educação pura e intacta da
sujeira que enlameia a mente daquelas crianças da cidade”. Seph permanecia demasiado
tempo enfurnado na residência, sem quase nenhum amigo senão os filhos de nobres,
gente bastante esnobe que só vangloriava os feitos e as riquezas de suas
famílias, e, felizmente, raros visitantes.
Restava-lhe
apenas o primo Eddy, três anos mais velho, o único com quem arriscava
transformar a mansão em um espaço de diversão, sendo o pique-esconde a
brincadeira predileta aos olhos dos dragões de mármore que nunca os
denunciavam. Eddy ganhava com frequência na melhor de cinco, de quatro, de
três, de duas, menos a de uma, e justificava sua derrota por estar atrasado
para um compromisso na cidade ou na biblioteca junto ao preceptor Sabino. Mas
as brincadeiras eram ocasiões tão pouco frequentes que se fossem à noite nunca seriam
vistas por uma mesma fase da lua.
Seph
invejava o primo por ele ter permissão para andar mais vezes pela cidade, e essa
inveja era intensificada nos momentos em que Eddy lhe contava sobre os
feirantes abundantes na via principal vendendo toda a sorte de produtos, a
quantidade de gente que perambula nas ruas, pessoas estranhas que dormiam em
becos escuros e imundos, crianças correndo e se divertindo na praça onde tem
aquela enorme fonte cuja água é cuspida por um dragão de pedra, e uma garota bonita que estancava as informações seguintes
da boca de Eddy.
Podia-se
contar nos dedos as vezes em que Seph tentara fugir da mansão para passar
algumas horas na cidade, pois, quando descoberto, recebia no traseiro punições
ardentes e sucessivas. Mas não era o castigo que abatia sua insubordinação às
regras da família. Seph teria se tornado mais inquieto e malcriado não fosse a
marcante presença dos dragões na arquitetura da residência. Ele os fazia seus
amigos “reais-imaginários”.
Embora
o culto aos dragões gerasse indiretamente sua reclusão, visto que estava ali
justamente por ser um Dracomir, o menino sustentava uma relação diversa com eles.
Diferente dos praticantes do draconismo, Seph os via menos como deuses a serem
reverenciados do que como seres a serem respeitados, mais um laço de afeto do
que uma relação de sujeição. Era essa a afinidade entre ele e os dragões, beirando
a semelhança da amizade entre dois humanos. E, por um sem número de vezes,
imaginou-a real. Imaginou um dragão real.
Seph
parava esporadicamente em frente às diversas estátuas dracônicas da mansão,
criando uma ligação de mentirinha com elas, até mesmo nomeando-as para se
convencer de que eram tão reais quanto imaginava. Contemplava-as com sua
fisionomia romântica, oferecia palavras que refletiam no mármore e escoavam
pelo chão, e, quando imprimia um olhar realista à estátua, perguntava-se como
seria encontrar um dragão cuja pele escamosa receberia suas palavras como um
afago. Era uma fantasia tão deleitosa quanto imergir literal e magicamente num
livro, o prazer cobiçado pela materialização de uma abstração, um sonho que se
experimenta acordado, um futuro ainda a ser realizado.
E se realizou, mas
não como imaginara.
— — —
—
Vim só para matá-lo!
As
palavras atingiram as escamas do dragão como a ponta de uma lança embebida no
caldo da crueldade. Somente uma criatura onipotente como ele poderia se opor
aquele demônio em forma de gente. O dragão escancarou a bocarra e rugiu contra
o inimigo, que aparentava não temer a criatura de cornos miúdos, pele bem
azulada e olhos cor de barro.
Esse
homem se aproximava a passos categóricos, com suas botas de couro, a capa marrom
e surrada enfunando ao sabor do vento, a mão enluvada sobre o pomo da espada
embainhada e o rosto insondável pelo capuz que o cobria. Assemelhava-se a
imagem de um andarilho versado em perigos, dotado de bravura e impavidez
imensuráveis. Mas na presença da criatura, o experiente andarilho transparecia
sua aura de caçador de dragão. Ele cessou a passada a uma distância de vinte
metros do inimigo e inclinou o pescoço para desafiar o dragão que tinha o
tamanho de uma estalagem de dois andares. Era o menor de todos os que já havia
visto.
—
Pragueje com suas garras, sua cauda, e suas chamas. E eu replicarei com minha
espada.
Puxou-a
devagar da bainha, revelando um aço quente e de intenso vermelho como se
coberto de sangue. Empunhou-a e direcionou a ponta para o dragão, que pareceu
mais inquieto com a iminente afronta e rugiu na tentativa de demonstrar sua
ferocidade e, quem sabe, abalar a intrepidez do caçador.
Sob
o céu cinzento e sobre a terra regada, homem e dragão se enfrentaram. Garras
tentaram rasgar a cota de malha sob a túnica escura junto ao peito do caçador,
em vão. Uma, duas, três evasivas seguidas. Uma rabanada tentou acertar o alvo,
mas este contornou um rochedo a tempo de fazer o ataque colidir com a pedra,
que resistiu ao choque, enquanto o homem se manteve seguro do outro lado.
Como
o terreno era pontuado por rochas com formas e tamanhos variados, algumas delas
até maiores que o dragão, o caçador presumiu estar em vantagem geográfica. A
criatura era desprovida de asas eficientes. Nas raras ocasiões em que ele as
esticava, podiam-se notar as membranas retalhadas. Usaria essa deficiência ao
seu favor.
Sabia
que as rochas não o salvaguardariam para sempre. Felizmente, os ataques
incisivos do dragão sucumbiam à sua extrema habilidade de esquiva, e, com
efeito, aproveitava as brechas advindas das falhas do oponente para acometê-lo,
rasgando-lhe as duras escamas impossíveis de serem transpassadas por uma espada
ordinária.
Mas
a arma do caçador era especial. Sua lâmina vermelha estava sedenta pelo sangue
do dragão, tornando o gume tão afiado quanto o instinto assassino residente no
coração do dono. E esse instinto refletia-se em cada corte executado, promovendo
sangrias numa criatura cada vez mais furiosa, e o furor dela transformou-se
numa intensa labareda a ser despejada sobre ele.
A
cólera flamejante, porém, esbraseou o rochedo atrás do qual o caçador se
escondeu. O terreno dificultava a locomoção da criatura e facilitava as
evasivas do caçador. Os olhos barrosos do dragão esquadrinhavam o lugar na
ânsia de ver um corpo em movimento ou abrigado atrás de uma rocha, e cuspia
fogo tão logo o achava, mas, em seguida, nunca descobria um cadáver
carbonizado, e por isso voltava a procurá-lo. Parecia um jogo de pique-esconde,
com a diferença de que achá-lo não era o bastante. A morte era o requisito para
a vitória. E o mesmo valia para o outro “jogador”.
O
caçador, com movimentos e pulos silenciosos, subiu no rochedo mais elevado,
acima do dragão que, sem notá-lo, ainda o procurava lá embaixo. Era o ataque
final. As duas mãos posicionaram a espada com a ponta voltada para baixo.
Bati. Sorriu, antegozando o triunfo.
Saltou. O vento fez a capa enfunar e o capuz descobriu-lhe a face.
O
dragão mal teve tempo de olhar para o alto antes de a lâmina cravar-se quase
por inteira em sua cabeça. Seu rugido de agonia ecoou pelas nuvens cinzentas
como o ribombar de um trovão. As pernas fraquejaram, os olhos se fecharam, a
boca silenciou-se gradualmente, e seu corpo pesado desabou sobre as rochas
menores, sacudindo o terreno pela última vez.
O
caçador respirou fundo e, então, puxou a espada da cabeça. Sangue em profusão
escorreu pela lâmina que por fim revelou-se fria e prateada como a de uma espada
comum.
— Quatro já foram.
Restam cinco.
2 comentários
Interessante esse primeiro capítulo. Achei a construção dos cenários muito boa e a cena ficou emocionante. Estou curioso para conhecer mais sobre o mundo e esse tipo de religião em torno dos dragões.