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A
oração custava uma moeda de prata. O dinheiro tilintou no fundo do cofre posto
à entrada do templo, enchendo de riqueza os ouvidos dos guardas que logo
abriram uma grande porta de carvalho para a passagem do orador.
A
luz do dia avivou o recinto circular. Ao fundo, num nível elevado a um metro do
chão, uma estátua de dragão era rodeada por um punhado de velas acesas e alguns
incensos. À frente da imagem destacava-se um banco de estofo vermelho e pernas
metálicas parecidas com caudas de dragão, chamado Assento do Orador. A porta
foi fechada em seguida, e o lume das velas e o aroma de incenso criou uma
solene ambiência.
Um
homem pançudo vestindo roupas garbosas se sentou, lambeu os dedos engordurados
pela carne que comera antes de chegar ali e pôs-se a falar:
—
Drakichima. — Significava “Que os Dragões sejam louvados” numa língua há muito
esquecida e somente registrada no Livro de Marduk. O homem trazia consigo um ar
simultâneo de aborrecimento e suplício e levou-o durante toda a sua conversa
com os deuses.
“Tenho
muito a lhes pedir. Nem sei por onde começar. É tanta coisa, tantos problemas
que me afligem… Acho que primeiro será bom tratar do domínio pelas minhas
terras! Ah, como isso é desgastante. Eu já tenho um grande problema com a safra
ruim em todos os anos, e agora me deparo com gente seminua invadindo minhas terras e construindo casas de palha como
se ali fosse o lar deles. Aqueles selvagens! Acham que são donos daqueles
hectares só porque já pertenceram aos seus antepassados. Meu bisavô comprou
todo aquele lugar, ora! Doze hectares. Pagou um com uma centena de espelhos,
outro com um rolo de seda, mais um com machados e facas… E três séculos depois
eles querem me dizer que aquilo não foi uma compra? Que tivessem barganhado em
moedas de ouro se quisessem ser pessoas decentes! Mas agora é tarde demais. Se
eles querem a terra, que coloquem mil moedas de ouro no saco, por hectare, em
vez de agirem como invasores. Fui até obrigado a contratar mercenários para
expulsá-los à força… O Conselho do Rei diz que não irá intervir só porque não
há um documento legal que ratifique a compra e que devo resolver eu mesmo a
situação. Ah, que vontade de ir a Capital e fazê-los comer dos frutos ruins que
são colhidos nas plantações. Antigamente eram bem suculentos, apeteciam a
qualquer nobre apetite. Hoje uma boa parte vai para a boca de plebeus e
indigentes. Já não ganho tanto, mas pelo menos eles compram até mesmo as mais
podres… Então, se puder fazer a cabeça dos Conselheiros a me ajudarem ou,
melhor ainda, disseminar uma praga que dê conta daquela gente selvagem, ficarei
muito agradecido.
“Meu
segundo problema é de família. Bem, talvez tivesse sido melhor aquela mulher
ter me dado um filho. O coração de
uma dama é muito mole e corre o risco de não raciocinar. Arranjei-a um belo
rapaz, filho do Barão de Senval, ao norte do reino, com quem tenho grande
amizade. Mas quando contei a Adele, minha filha, sobre seu pretendente… Hum!
Ela ficou alvoroçada e disse que não aceitaria o casamento de forma alguma.
Depois, sempre que eu tocava no assunto, ela continuava negando a proposta com
uma veemência tão malcriada que me permitia imaginar o prazer de educá-la a
base da cintada. Por fim, deixei a mãe cuidar do assunto. Dei o prazo de uma semana para eu ouvir de Adele que se
casaria com o filho do Barão de Senval. E passado esse tempo, quando entrei no
quarto de minha filha, vi a resposta dela… Lembro como se fosse ontem, e nunca
senti tanto ódio na minha vida.
Quando vi aquele traste de peito nu pulando da cama, queria ter apertado o
pescoço do infeliz até a cabeça se soltar do corpo. Mas ele conseguiu fugir
pela janela antes de eu pegá-lo. Então descarreguei a raiva na estúpida filha
que tive. Deixei-a tão dolorida que pranteou por horas até as lágrimas secarem
e a garganta inflamar. Mais tarde fui saber que, ainda bem, ela ainda era uma
jovem “intocada”, mas só os dragões sabem se ainda seria depois daquela noite
em flagrante… Foi nessa época que eu contratei os mercenários para dar conta de
minhas desavenças com os selvagens, e paguei-os um adicional para acharem o
desgraçado. Descobri que ele era um miserável de uma vila pacata. — Aqui o
homem permitiu-se um instante de gozo. — Três dias depois dei a minha filha um
embrulho. Nele havia a cabeça do traste com o qual ela se aventurava à
noitinha… Ela ficou horrorizada, me chamou de monstro e berrou que não se
casaria com mais ninguém na vida… Já faz três semanas desde então, e ela ainda
continua reclusa em seu quarto, come muito pouco, e está com o rosto mais
pálido a cada dia. Eu gostaria de lhes pedir que devolvam a vitalidade ao corpo
e à mente dela.”
“O
último problema é uma pedra no sapato, e por isso incomoda. É sobre um de meus
escravos. Ele vem demonstrando resistência às minhas ordens, cuspindo asneiras
de que deveria ser tratado como um ser humano comum. Por acaso o garoto é cego
ao ver-se no espelho e não reparar no estigma do dragão em sua testa? Ele
nasceu marcado, portanto, é dever
dele cumprir esse destino. Está lá, escrito no Livro de Marduk, e ele já ouviu
várias vezes quando o sacerdote vinha a nossa casa fazer a leitura. E aqueles que se tornaram gelo perante o
fogo serão derretidos por gerações até sua subversão evaporar. Seus filhos
serão estigmatizados com o castigo dos Dragões e passarão os estigmas às
gerações futuras, que tornar-se-ão submissas aos outros seres humanos. Se os
marcados recusarem este destino, ao morrerem, suas almas serão expulsas do
Círculo Etéreo e cairão no Abismo Flamejante, de onde nunca mais poderão sair.
Eu tento explicar para aquele moleque. ‘Está vendo? Continue me desobedecendo e
nunca mais poderá regressar a este mundo, e também ficará para todo o sempre na
morada da morte.’ É claro que isso o assusta, mas ainda assim… ele parece
gostar de desafiar as consequências. Já pensei em vendê-lo, mas minha mulher
insiste que os disparates do garoto são fruto da idade e que devemos ficar com
ele por mais tempo para ver se há uma melhora. Bem, rogo aos dragões que
coloquem um pouco de juízo naquela cabeça de vento Só não o matem, por favor.
Ele pode valer bastante em um leilão.”
—
Drakomachi — disse o nobre em despedida. Significava “Agradeço aos dragões por
ouvir as minhas preces”.
O
Assento do Orador tornou a ficar vago. Mais tarde, sentou-se ali outro homem. Tinha
o fedor de suor impregnado no exausto corpo por baixo da cota de malha, e
trazia no rosto uma expressão exaltada.
— Drakichima… Foram longos dias rastreando
nas montanhas, com a certeza de que lá existia uma base rebelde. Pedimos aos
dragões que nos agraciassem com sua visão acurada e fomos atendidos.
Conseguimos encontrar a toca daqueles ratos. Invadimos com uma centena de
cavaleiros, tomamos os becos daquele labirinto cavernoso, cercamos os inimigos,
prendemos os que se renderam e matamos os que resistiram. — O cavaleiro
desembainhou a espada que outrora estivera manchada de sangue. — Eu mesmo
exerci a vontade dos dragões, decapitando um rebelde que se opôs a nós. Naquela
hora quase levei por trás uma estocada de um inimigo que queria se vingar do
parceiro morto. Mas os deuses estavam comigo, e consegui desviar do golpe e
cortar a garganta do desgraçado. Depois prendemos todos aqueles que não queriam
reconhecer os deuses dragões e descemos com eles até a cidade mais próxima.
Reunimos muita lenha e esperamos a noite cair, para incendiar nossas tochas com
o fogo sagrado e torrar a carne dos pecadores. Eu mesmo acendi uma pilha e ouvi
os gritos de uma mulher decrépita em meio ao fogo. Aaah! O grito da justiça divina.
Foi uma sensação sublime… Continuarei cumprindo meu dever até expurgar todos os
pecadores do mundo. Drakomachi!
O Assento do Orador ficou novamente
disponível, e um tempo de passos hesitantes sucedeu-se até ele ser ocupado por
um garoto de expressão incomodada.
Silêncio. Nenhuma oração.
O menino buscava compreender o que essa escultura
possuía de diferente comparada com aquelas de seu convívio. Não se referia ao
material da arte, como o mármore das estátuas da mansão ou a madeira desta, mas
ao grau de importância.
A escultura do templo era um dragão à
semelhança de um lagarto, com asas contraídas, chifres eretos, narinas
proeminentes e expressão onipotente. As patas foram modeladas sobre um suporte
retangular bem pregado ao chão, para evitar que fosse roubada.
Era dito que a estátua representava todos os
dragões. Mas o garoto soube que cada templo apresentava uma imagem diferente. Ele
já havia visto outras esculturas em feiras de comércio, moldadas em madeira,
barro ou argila. Algumas eram pequenas, outras chegavam ao mesmo tamanho das
esculturas do templo. Apenas não compreendia a razão dessa imagem ser mais
importante que as demais.
Será que este dragão foi esculpido por alguém
especial ou será que é especial apenas porque está aqui?
Mastigou essa dúvida por alguns instantes,
imaginando que o dragão diante dele fosse respondê-lo. Mas houve apenas o
silêncio que perdurou na sala até a entrada do próximo orador.
— — —
A oração custava três moedas de prata. O dinheiro tilintou no meio de
tantas outras dentro do cofre.
Uma moça de roupas surradas da cor da terra, cabelos como grama seca e
mãos calejadas pelo trabalho rural acomodou-se no Assento do Orador e enfatizou
as rugas prematuras no rosto abatido.
— Drakichima — disse ela, com a voz embargada. Havia feito um grande
esforço para reservar o dinheiro da oração. — Hoje a mesa ficou vazia de novo.
Não dei nem um pedaço de pão, nem um ovo partido e nem um gole de leite pros
meus três filhos. Temos que economizar, senão tudo vai acabar. Faz alguns dias
que estamos assim. À noite escuto três, não, quatro barrigas roncando, e nem
conseguimos dormir direito por causa do barulho. Uma vez eu disse que eles só
podiam beber um pouquinho de água na hora do desjejum, mas todos eles queriam
algo com gosto; só que não tinham e começaram a chorar, até o Sebastião, que é
o mais velho, e eu também. Foi então que dei a ideia: as lágrimas tinham sabor.
Mandei todos beberem o choro. A Florzinha disse que era até melhor que os
xaropes da velha anciã, e parece que isso encheu a barriga deles, porque
pararam de reclamar… No dia seguinte, fizemos a mesma coisa, e no outro, e no
outro. Até que hoje não conseguimos mais chorar. Nossos olhos estão tão secos
como o poço ao lado de nossa casa. Outro dia eu peguei a Florzinha e o
Teodorico fingindo que eram cavalos só pra se alimentarem do capim. Eu… — Nos
olhos dela transbordavam a secura — sou tudo o que eles têm desde que meu
marido… Ah, tenho certeza que estamos pagando pela burrice dele. Oh, sábios
dragões, por favor, perdoe a heresia do meu marido e tenha piedade da minha
família. Tudo o que quero é alimentá-la. Por favor, nos permita comer algo doce
daqui pra frente. Drakomachi.
Em seguida, o Assento do Orador recebeu um jovem adulto de cabelos raspados,
olhos amedrontados e uma marca de nascença na testa — uma linha denteada que
parecia ter sido marcada a ferro. O rosto compungido trazia um peso que não lhe
permitia erguer a cabeça, de modo que iniciou a oração sem olhar para a estátua
do dragão.
— Drakichima! Oh, dragões, meus deuses, me perdoem, me perdoem. Eu fui
contra o meu senhor, desobedeci as suas ordens, praguejei contra sua imagem em
noites mal dormidas, desejei cruzar a linha que define o meu destino, e pior,
muito pior, desejei a extinção dos dragões quando soube que estão sendo… Não! É
melhor não pensar nisto, antes que algum demônio dentro de mim me faça ter ideias
impuras. — Só após ter confessado seus pensamentos libertinos, teve força para
levantar a cabeça e encarar o dragão. — Venho agora receber meu devido castigo.
Drakomachi!
O escravo ficou de pé, mas, ao invés de encaminhar-se para a saída,
bateu quatro vezes na aldrava — em forma de dragão — de uma porta à direita do
recinto. Quem o atendeu foi um sacerdote de idade avançada, vestido com um
manto de seda vermelho debruado em ouro, que o recepcionou com uma expressão
dura, mas dotado de sutil compaixão. Nenhuma palavra, apenas a entrada discreta
do pecador e o acolhimento mudo do anfitrião. Instantes depois ressoaram
gemidos por conta de açoites em pele já acostumada, e só então o ranger de uma
porta, uma despedida quieta, e passos lânguidos até a saída do templo.
O próximo a sentar-se no Assento do Orador não o fez, postou-se atrás do
objeto. A profusão de velas acesas revelou a linha reta de sua boca vergar-se
numa curva de escárnio, os olhos negros cintilarem um insano contentamento, e
nada mais além das roupas gastas de andarilho.
— Cada vez menos dragões se comprazem com as orações humanas, não é
verdade? Deve ser complicado distribuir tantos pedidos entre vocês seis. Ah,
desculpa, esqueci que agora são cinco. — A curva do sorriso se acentuou — E em
breve serão quatro, depois três, dois, um, e então não haverá mais dragões de
verdade que atendam as preces de seus fiéis. Eu vou caçar todos, um por um, e
matá-los até o ar deste mundo deixar de ser impregnado pelo hálito de vocês…
Foi então que um detalhe, até então nublado pelo ódio excitado, fez o
errante se calar. A imagem do dragão a sua frente não lhe era estranha. Reconheceu
a mesma arte de madeira que vira num passado distante. Mergulhado em
inquietações de outrora, indagou:
— Por que você é tão especial? Por que adorar a madeira em vez do
mármore, por exemplo? Tenho a impressão de que sabe a resposta.
O caçador desceu os olhos pela garganta do dragão até a região do peito,
e ali discerniu um pequeno orifício camuflado pela tinta escura. Dificilmente
um orador perceberia uma fechadura escondida na estátua, pois, enquanto
proferia sua prece, ele mantinha a cabeça inclinada para olhar a face do dragão
acima dele. Uma distração sutil e eficaz empregada pelos sacerdotes.
O homem tirou do bolso uma chave que carregava consigo durante a viagem,
inseriu-a na fechadura e a girou. Um quadrado de madeira se destacou, revelando
uma portinhola. Ele enfiou a mão dentro da estátua oca e fechou-a em torno de
um monte de moedas. Despejou-as em sua bolsa anteriormente vazia de economias e
a encheu até a boca. Em seguida, trancou a portinhola e subiu os olhos para
encarar a face da estátua.