Resenhas, artigos e contos

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Resenha: O Presidente Negro, de Monteiro Lobato

Editora: Globo
Autor: Monteiro Lobato
Ano: 2008 (originalmente publicado em 1926)
Skoob
Sinopse: Em seu primeiro romance para adultos, Monteiro Lobato aborda temas polêmicos como a segregação entre brancos e negros e a guerra dos sexos. Ainda prevê a futura hegemonia asiática em uma época em que a China, o gigante industrial do terceiro milênio não passava de um país quase feudal e totalmente dilacerado.
Neste livro também aparece o Teatro Onírico, que fixa os sonhos na tela de cinema, desmistificando as teorias freudianas ao transformar os fluxos do inconsciente em entretenimento de massa.
Ele intuiu também os experimentos científicos semelhantes aos clones atuais, em que seres humanos criados pela Corporação Psíquica de Detroit desdobravam-se, multiplicando os cinco sentidos.
Após o período em que viveu nos EUA, Monteiro Lobato afirmou que a América retratada neste livro estava de acordo com o que encontrara.

Resenha



Há algum tempo comecei a investigar a gênese da produção de literatura de gênero (fantasia, ficção científica, policial, terror etc) no Brasil e, surpreendendo minhas expectativas, encontrei obras datadas do início do século passado que se enquadram nessa categoria. Uma delas é o Presidente Negro ou “O choque das Raças” (nome original do livro), de Monteiro Lobato; sim, nosso conhecidíssimo autor de literatura infantojuvenil e do Sítio do Pica-pau Amarelo. Trata-se de um enredo de ficção científica provavelmente inspirado em “A Máquina do tempo” de H.G.Wells (embora eu não tenha lido a obra deste autor), e também seu único romance adulto. O Presidente Negro foi publicado em formato de folhetim no jornal A Manhã, entre 5 de setembro e 1º de outubro de 1926. 

No livro, Ayrton Lobo, o narrador, é um funcionário da firma Sá, Pato & Cia., também um homem com um ideal: tornar-se de pedestre a rodante (como ele gostava de dividir o grupo de pessoas que andava a pé e aquele que andava sobre quatro rodas). Considerando a época em que a história fora escrita, essa passagem parece abordar o anseio de uma sociedade que vivia no período de plena maravilha pela indústria automobilística. Na verdade, esse ideal ainda está presente nos dias de hoje, pois o carro transformou-se numa figura simbólica e capitalista de consumo sem o qual a pessoa não se acha em alto grau social e econômico. Quando Ayrton Lobo compra um automóvel, não contente com seu desempenho, compra outro mais potente, demonstrando claramente sua insensibilidade em relação ao grupo a que pertencera — os pedestres —, além de grande irresponsabilidade.


Paguei diversas multas, matei meia dúzia de cães e cheguei a atropelar um pobre surdo que não atendera ao meu insolente “Arreda”.


Claro, que essa insensatez de Ayrton ao volante terminaria em tragédia.


A região que eu atravessava era de maravilhosa beleza. Serras azuis ao longe, quais muralhas de safira a sopesarem um céu de cobalto. Dia de limpidez absoluta. Paisagem das que vibram de nitidez. Desfeito aos formosos quadros da natureza, distraí-me com a novidade do espetáculo e… cataprus!


Ayrton acordou na mansão do professor Benson, um misterioso homem que vivia enclausurado em sua residência e que, sabia-se por um amigo, era dono de muito dinheiro que ganhava no câmbio, pois nunca perdia. Levemente recuperado, Ayrton explora a mansão e, aqui, o autor descreve com brilhantismo as sensações díspares do cenário urbano e rural.


Para eles era eu o empregado — e também vinte dias antes eu me considerava apenas um empregado, isto é, humilde peça de máquina de ganhar dinheiro que os senhores Sá, Pato & Cia. houveram por bem montar dentro de uma certa aglomeração humana. Mas ali não me via empregado de ninguém; era um ser igual às ervas que esverdeciam as colinas, ás arvores que frondejavam nas grotas e às aves que piavam nas moitas. Sentia-se deliciosamente integrado na natureza.


Além do professor Benson e dos empregados, também vive na mansão sua filha Jane, por quem Ayrton se apaixona à primeira vista. Mas essa não foi a única surpresa para o protagonista. O professor Benson lhe apresentou o “porviroscópio”, uma máquina capaz de prever o futuro até o ano de 3527. As explicações sobre o funcionamento desse grande aparato foi muito bem elaborada, empolgando o leitor a descobrir que usos teria o “porviroscópio” para os personagens. 

Mas acontece que se fosse o leitor a ter um “porviroscópio”, ele saberia que dali em diante o livro não valeria mais a pena ser lido. Monteiro Lobato não soube tirar proveito do enredo construído, e utilizou a segunda metade da história para fazer Jane NARRAR a Ayrton a saga do presidente negro estadunidense e o choque das raças. Ou seja, a história por trás do título do livro não é mostrada, mas CONTADA por uma personagem, e isso gera um distanciamento muito grande do leitor em relação ao livro. 

Para aqueles que, como eu, tentaram se aventurar no extenso conto de Jane, encontraram mais um motivo de desagrado. Os indícios de Monteiro Lobato ser conhecido como um escritor racista estão presentes em O Presidente Negro. Embora muitas opiniões preconceituosas saiam dos personagens, não há como não relacionar isso ao provável preconceito deste autor.


(…) nossa solução [a do Brasil de 1926 e de hoje] foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter.


Este foi o único livro em que me senti satisfeito por pular páginas. Tudo o que me interessou na história daí em diante era se Ayrton conseguiria se declarar a Jane, uma personagem apaixonante, pra dizer a verdade, — excetuando o lado racista. 

Enfim, é bom ressaltar que a obra foi escrita no início do século passado; outra mentalidade, outra visão de mundo. E também numa época em que teorias eugenistas começavam a ser difundidas no Brasil.

2 comentários

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Bom dia, Luiz Fernando. Fiz questão de ler cada página desse livro para ter embasamento e autoridade teórica quando eu mencionar quão perigosa pode ser a leitura de algumas obras de Monteiro Lobato.
Concordo com você quando se disse satisfeito em pular páginas, embora tendo-as lido todas, não fiz questão de me aprofundar em cada parágrafo. Sei que a visão de Monteiro Lobato, incutida nas personagens, não se limitou à época do escritor, que, pela data da morte, praticamente pouco ou nada deve ter ouvido sobre o horror do holicausto. Quem sabe repensaria no que escreveu? Ou não!
Também estou de acordo que, quando a narrativa amorosa entre o sr. Ayrton e da Sra. Jane ganham outra narratividade, tendo como cenário a política norte-americana, o livro perde muito do seu potencial.
Obrigada por sua postagem.

Katia (katia.vulpes@gmail.com)

Balas
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Bom dia, Katia. De fato, a abordagem de Monteiro Lobato pode ser muito complicada, principalmente em ambiente escolar. É essencial que esses tons que hoje enxergamos como racismo sejam levados em conta e esclarecidos, enfatizando os pensamentos políticos e sociais que deveriam estar em voga naquela época e que certamente influenciaram o autor. Pode ser que ele reescrevesse essa história de outra maneira em um período posterior, vai depender do quão conservadora seria sua mentalidade a essa mudança de perspectiva para com os negros.

Muito obrigado pelo comentário.

Balas