Um filme a ser mandado para outra dimensão?
Desde que foi anunciado as primeiras
imagens de A Lenda do Santuário e, eventualmente, a notícia de que o
filme seria exibido aqui no Brasil com os mesmos dubladores da saga
clássica, com exceção do Valter Miro — o dublador de Camus, de Aquário
—, os fãs começaram a elevar o cosmo, como bem sugeriu a publicidade do
longa. Enfim, chegou o dia 11 de setembro de 2014. Todos elevariam seu
cosmo ao máximo, porém…
Para muitos, uma filme intragável. Poucos o aceitaram, e ainda assim com ressalvas.
Todos já sabíamos que seria uma releitura
da série clássica, e traria algumas inovações e mudanças mais próximas
ao gosto da geração atual (que não é a mesma que viu o anime na década
de 90). Logo, seria ingenuidade entrar no cinema e pensar que veria uma
adaptação fidelíssima da saga do santuário, até porque é impossível
condensar pouco mais de 70 episódios em um filme de apenas 1h e 30 mim
de duração. Na verdade, a breve duração do filme já conta como um
aspecto negativo, justamente pela impossibilidade de traduzir os
principais eventos do anime e amarrá-los de maneira natural. Apesar
disso, seria possível manter alguma essência que desse credibilidade ao
filme e o tornasse passível de uma aceitação geral do público, o que não
aconteceu.
A Lenda do Santuário é para iniciados, ou
seja, quem nunca viu o anime não deve sequer pensar em assisti-lo. O
filme não consegue ser independente, obriga o espectador a se lembrar e
considerar certos eventos da série para tapar os buracos do roteiro que é
corrido em muitas ocasiões. No início a história até procura
contextualizar o enredo e apresentar os personagens, mas essa
preocupação logo é substituída pela emergência do andamento da história.
A mudança mais evidente no longa foi o
tom que apela para o humor. Cavaleiros do Zodíaco é uma série marcada
por um teor dramático, que estimula as lágrimas no espectador (ainda
mais se levarmos em conta a excelente trilha sonora do anime) e cria
momentos de muita emoção: exatamente o que faltou no filme.
Ironicamente, algumas cenas mais descontraídas cativaram parte do
público, principalmente na primeira metade do longa, porém, em outras
houve um exagero desconfortável (sim, uma delas é caso Máscara da Morte,
mas chegarei nele em breve). Muitas vezes o humor é amparado pelos
movimentos e fisionomia dos personagens, que remetem aos animes que
detém esse tom descontraído, e isso afasta A Lenda do Santuário ainda
mais de sua origem. No entanto, essa alteração do drama para o humor não
é condenável, pois foi a releitura que quiseram dar ao filme. O
problema é que esse teor engraçado passou dos limites e não abriu espaço
para o drama.
Apesar de o foco ser a jornada nas doze
casas, era essencial que a história apresentasse e explorasse os
cavaleiros de bronze. A primeira aparição do grupo, que já se conhecia,
foi uma ótima sequência de ação, criando uma leve empolgação e a
esperança de que veríamos algo bom. Contudo, o filme não conseguiu
aprofundar os personagens, que carecem da personalidade que os
identifiquem. O único razoavelmente desenvolvido foi o Seiya (maldito
protagonismo!), mas ainda assim seu tom brincalhão sobrepujou as ações
dramatizadas e o espírito de sacrifício pelos amigos e por Athena. Uma
solução que o roteiro não utilizou seria o de pincelar a personalidade
dos cavaleiros no início e usarem flashbacks em momentos posteriores,
como fizeram com o Seiya e Saori, mesmo na batalha das doze casas,
quando, por exemplo, seria conveniente conhecermos mais sobre o Hyoga
durante a luta com o Camus. Pelo menos, a teimosia do Shiryu em não
tirar a armadura nas ocasiões comuns foi uma boa brincadeira com o
personagem. O Ikki aparentava ser o mais fiel à saga clássica, mas o
roteiro tratou de rebaixar o personagem.
Por outro lado, a direção de arte é
provavelmente o único trabalho que merece aplausos. Com a
responsabilidade de dar uma nova cara à série, a decisão de usarem
elementos mais sofisticados causou um impacto que logo foi aceito pela
maioria do público. A mudança principal se encontra no design das
armaduras e no cenário do santuário; alterações que não ferem a essência
visual da franquia.
É uma pena que esse cuidado gráfico não
tenha sido acompanhado por um roteiro de qualidade. A partir do ato das
doze casas, a história começa a acelerar os diálogos e as lutas, não as
aprofundando. Claro, isso já não era novidade, considerando o pouco
tempo do filme, contudo ainda se podia esperar um desenvolvimento
razoável dos eventos. O roteiro não tinha como obrigação seguir a mesma
sequência narrativa da série clássica, mas sim a de recriar os
principais atos, mesmo que através de um desenvolvimento diferente. A
passagem pela casa de áries e de touro, apesar de leves mudanças,
seguiram bem essa proposta. Mas daí pra frente começam os problemas. A
passagem pela casa de gêmeos foi retirada, e todos sabem a importância
que ela tem para o enredo; bastava uma cena de um minuto, só para
mostrar o mistério que envolve esta casa, mas preferiram descarta-la. E
então chegamos na casa de câncer.
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O caso Máscara da Morte foi uma prévia do
que aconteceria se Cavaleiros do Zodíaco fosse uma franquia da Disney.
Ainda me pergunto como puderem transformar um personagem que me causava
medo quando criança em um palhaço afeminado. Não foi o bastante
conferi-lo cantando, e o público ainda teve o desprazer de vê-lo de
cueca. Foi a cena mais “wtf” que vi no cinema.
A casa de câncer estreou em grande estilo
o declínio do filme. Até houve alguns breves momentos que conseguiram
dar ao espectador o que ele esperava, como a batalha entre Seiya e
Aioria, na casa de Leão. Mas como quase todos os cavaleiros de ouro são
personagens rasos e os cavaleiros de bronzes não tiveram o
aprofundamento esperado, as lutas pecaram na falta de emoção e
identidade. Cenas emblemáticas, como o embate entre Shaka e Ikki ou
Shura e Shiryu, foram substituídas por soluções mal desenvolvidas para
apressar a história. Mesmo o encontro de Hyoga com o seu mestre ofereceu
muito pouco apelo emotivo. Há ainda a mudança do cavaleiro de
escorpião, Milo, para uma mulher, que apesar do belo visual, é uma
personagem rasa e sem carisma. E para piorar, o cavaleiro de peixes (meu
signo), Afrodite, tem uma participação breve e fútil. A luta final
contra o Saga era a última esperança para compensar as falhas até então,
porém, o filme conseguiu se afundar ainda mais, descaracterizando por
completo o clímax da história. No geral, a jornada pelas doze casas não
ofereceu um pingo de catarse.
Resumindo: um público revoltado e
decepcionado. O problema de A Lenda do Santuário não foi nem a ausência
dos momentos marcantes da série, e sim de um enredo competente que
carregasse a essência de Cavaleiros do Zodíaco. No final, nem os fãs da
década de 90 nem os mais recentes foram respeitados. O filme é no máximo
razoável, bem abaixo do que era aguardado. Apesar disso tudo, a
experiência de assistir Cavaleiros do Zodíaco (ou qualquer outro anime)
no cinema é bastante significativa, tanto para prestigiar o esforço de
nos trazerem uma animação japonesa para os cinemas brasileiros, o
excelente trabalho de dublagem que confere um ar de nostalgia ao filme, e
a sensação de estar numa sala de cinema com inúmeros fãs reunidos. Por
essa razão, recomendo que assistam o filme, mesmo que seja para sair
revoltado de lá.
Resenha publicada originalmente no site Gekkou Gear