Peça para alguém
lhe dar um exemplo de mangá ou anime? Mesmo que ele tenha pouca familiaridade
com essa mídia narrativa, provavelmente virão à tona títulos como Dragon Ball
Z, Cavaleiros do Zodíaco, Pokémon, Sakura Card Captors, Naruto etc. Na
interseção desses títulos, temos a prevalência das seguintes características:
a) foram animes exibidos na TV brasileira a partir da década de 1990; b)
tiveram seus mangás publicados aqui no Brasil; c) são histórias shonens.
Shonens? Sim, um
“gênero” de mangá direcionado a um público alvo, neste caso, garotos (entre 12
e 17 anos), ressaltando-se que “shonen” é um termo demográfico, não o estilo em
si do mangá. Ele é apenas um dentre os tipos de mangás, que são categorizados e vendidos
usando o público-alvo como parâmetro. Essa é uma característica vantajosa para
o mercado de gibis japoneses, visto que a repartição de gêneros distinta da
convencional (ação, fantasia, romance, ficção científica, comédia etc) garante
uma maior demanda de leitores, que não necessariamente irão consumir os mesmos
tipos de mangás — um leitor de shonen pode acompanhar uma história shoujo,
destinado a garotas, semelhante ao que ocorreu aqui no Brasil com Sakura Card
Captors, cuja animação foi assistida também por garotos. No entanto, se
observarmos, no Japão, o ranking dos mangás mais vendidos de todos os tempos,
veremos que os títulos shonens ocupam as primeiras colocações. Por isso podemos
concluir que o público consumidor dos mangás é majoritariamente jovem.
O sucesso do shonen
é compreensível se levarmos em conta algumas de suas características. A
primeira delas é de âmbito mercadológico: um título shonen vai além do mercado
de mangás, podendo migrar para a indústria dos jogos eletrônicos, caso o título
seja focado em batalhas e competitividade (por exemplo, Dragon Ball, Naruto,
Cavaleiros do Zodíaco); ganhar uma versão animada para a TV ou cinema que, por
sua vez, catapulta a venda dos mangás (coisa que não acontece com as comics de
super-heróis, mesmo com a Marvel e a DC marcando forte presença no cinema);
ganhar uma versão live-action, ou seja, em carne e osso (geralmente em histórias
com batalhas menos extravagantes ou mais psicológicas, como Samurai X e Death
Note, respectivamente); além de ser estampado em vários outros produtos. Tendo
maior apelo comercial que um mangá seinen, por exemplo, o shonen tem grande
visibilidade mundial por seu caráter transmidiático. A importação do gênero
pelo Ocidente também contribuiu com sua difusão. Aqui no Brasil, na TV aberta,
tivemos a importação de vários animes shonens (e shoujos) nas duas últimas
décadas, se considerarmos Cavaleiros do Zodíaco como o pioneiro (apesar de
outros animes terem vindo anteriormente). Este foi um sucesso explosivo na década de 1990, tanto na
TV quanto no mercado, que foi tomado por produtos com a marca dos Cavaleiros.
Por outro lado, se
o sucesso comercial depende do público, este depende do produto original, o
mangá/anime. Entramos, agora, na segunda característica: o conteúdo das
histórias shonens, principalmente daquelas publicadas pela revista semanal
Shonen Jump, cuja fórmula de conteúdo dita os parâmetros do gênero. Podemos
reunir alguns atributos compartilhados por essas histórias que, de certa forma,
são os pilares do gênero:
·
A presença de super-poderes ou
situações fantasiosas. Raramente um mangá shonen trará um
enfoque realista; seria como querer ver realismo em comics de
super-heróis. Essa característica permite desenvolver o atrativo dos shonens,
que são as batalhas. Mesmo nos mangás de esporte, os personagens apresentam
técnicas pouco realistas, como o “chute de trivela” de Oliver Tsubasa ou o
“chute canhão” de Hyuga, em Super Campeões (Captain Tsubasa, no Japão). Embora
o modo como são tratados os elementos e as situações fantásticas direcione a
idade do público-alvo, o maior ou menor uso de realismo ou fantasia também
influencia a recepção da obra em relação à idade do público.
·
Protagonismo. É impossível pensar num anime/mangá shonen sem pensar em seu
protagonista, um personagem explorado de forma a cativar o público e que é
responsável pelas principais mudanças na história. Em Dragon Ball, o universo
inteiro depende de Goku para derrotar o vilão e salvar o universo; em Super
Campeões, o time do Nankatsu e a seleção japonesa não consegue sequer ganhar um
jogo sem a presença de Tsubasa; em Cavaleiros do Zodíaco temos o protagonismo
exagerado de Seiya, que, mesmo sendo o personagem menos interessante do grupo,
precisa ser aquele a vencer o vilão usando um “Atena ex machina”.
·
Perseverança e superação de desafios. Essa característica motivacional consegue alcançar qualquer faixa
etária, tanto os jovens quanto os adultos que ainda se aventuram no gênero. O
exemplo clássico são os treinamentos pelos quais passam os protagonistas (e
outros personagens), mostrando a evolução de habilidades por meio do esforço.
Seja treinando ou enfrentando antagonistas, eles nunca desistem. A ideia é
exaltar mais a capacidade de nunca desistir de seus objetivos do que a vitória
em si. Como exemplo, temos Luffy (One Piece), que sonha em ser o Rei dos
Piratas; Rock Lee (Naruto), que quer provar a todos que pode ser um ninja; Ipo
(Hajime no Ippo), que quer se tornar um boxeador profissional.
·
Amizade e trabalho em equipe. Bastante valorizadas na sociedade japonesa. Nas histórias, é comum
o personagem contar com o apoio e incentivo de seus companheiros, ou que ainda
precise conquistá-los de alguma forma. Para derrotar os oponentes, embora o
protagonista tenha uma parcela considerável na vitória, ele sempre contará com
a ajuda dos amigos e até mesmo com o sacrifício deles. O exemplo clássico são
os arcos em que cada personagem de um grupo deve retardar um antagonista para
que os demais consigam avançar. É caso do arco das Doze Casas de Cavaleiros do
Zodíaco: cada cavaleiro se sacrifica para que seus companheiros continuem
subindo até a sala do mestre.
No entanto, há
shonens em que essas características têm pouca relevância ou são mostradas de
forma não convencional, como é o caso de Death Note, em que o uso da fantasia é
menor e a valorização da amizade não parte do protagonista, visto que ele a usa
a seu favor de maneira egoísta. Em Attack on Titan (que não é publicado pela
revista Jump), o protagonismo de Eren Jaeger vai decrescendo conforme o avanço
da história; sua importância na narrativa permanece, mas o foco nos objetivos
do protagonista se torna menos saliente do que outras questões que começam a
serem levantadas pela trama.
A repetição dessa
fórmula agrada a maioria do público, mas torna-se rapidamente enjoativa após
algum tempo, obrigando o leitor ou o espectador a migrar para o gênero seinen,
que é bem mais flexível. Entretanto, o shonen cumpre com excelência o seu papel
de atrair os jovens do mundo inteiro, pois, por mais que seus temas estejam
imbuídos com a carga cultural do oriente, eles são universais e, portanto,
assimiláveis pelo adolescente de qualquer país.
Publicado originalmente em Literatortura