Esse conto foi escrito no final do ano retrasado. Enviei-o para um concurso literário, e garanti um quinto lugar. Para essa versão, editei alguns trechos, como ocorre a qualquer escritor que bata o olho num texto que escreveu há muito tempo. Publiquei-o também nos sites abaixo.
Sinopse: Quando o infinito se torna finito, um Verbo cresce perante sua vítima e dá início a ações capazes de levá-la a um fatídico destino.
A vida de Hugo Bonança se
esvaía como o pôr do sol, mas sem qualquer beleza ou admirador. A noite eterna
de sua alma careceria de estrelas, todas roubadas por mim, dia após dia, sem
chance de ele reavê-las. Não é tarefa difícil roubar um número finito de
estrelas quando alguém deixa de sonhar.
Hugo era como qualquer
um. Habitava o interior de um círculo de pessoas do qual não podia escapar e
cujo raio, no seu caso, media vinte anos de vida. A maioria dessa gente vivia
de costas para Hugo. Isso facilitou muito minha ação.
Passei a acordá-lo duas
horas antes de seu despertador tocar um som intermitente que lhe inspirava dias
comuns e mecânicos. Também descolei da mente dele as notas que o lembravam de
levar as chaves de casa, a escova de dente, o celular, o lanche da manhã, a
garrafa de água gelada para se hidratar a caminho da faculdade, e outras coisas
imprescindíveis ou não para sua jornada diária. Quanto às duas horas de sono
faltantes, devolvia-as depois do almoço, durante aulas enfadonhas para que sua
obrigação estudantil suportasse o peso das pálpebras.
No início do inverno,
mexi em seu paladar, dando a tudo o que comia o sabor de nada. Hugo recorreu ao
conhecimento de um médico, que atribuiu o distúrbio do paladar ao resfriado que
o atacava. Curou-se do resfriado, mas não do paladar doente. Percebeu, logo
depois, que a vida como alimento também se tornava insípida. Ele chorou, e sua
língua saboreou as lágrimas. Hugo nem desconfiava de minhas intervenções
insólitas, e tardaria a percebê-las até as ações extrapolarem qualquer
especulação lógica.
Em seguida, enfraqueci a
vivacidade nas pernas. Mas cogitei que a perda seria mínima para o rapaz, já
que ele as usava somente para andar e quase nunca corria ou se movia de forma
enérgica. Felizmente, o efeito foi desastroso para Hugo, pois, desafiando a
sequela de minha última ação, desejou embarcar em certas aventuras que antes
não gostava; e como o trabalho das pernas não excedia uma caminhada, não viu
escolha senão recusar o futebol com os colegas de turma e a entrada numa pista
de dança com a garota que amava.
Também não pude deixar de
infligir no garoto a ação categórica que o transformou em alguém inapto a
enxergar as cores do mundo, exceto uma. Cinza. Hugo não distinguia mais a cor
do céu, do gramado, das flores, da vida. Toda a embalagem do mundo lhe pareceu
cinzenta, e seu conteúdo, melancólico.
Então apliquei nele minha
última ação; ou seria esta e as demais, maldições?
O rapaz tinha laços
frouxos de amizade, e não foi difícil para mim desatar cada nó. Quando o fiz,
Hugo sentiu-se um adulto que não sabia amarrar os cadarços do tênis e se viu
obrigado, na maior parte do tempo, a andar encarando seus passos para não cair.
Aos poucos, foi perdendo o contato com as pessoas, e viu-se rejeitado por
aqueles que o prendiam dentro do círculo onde morreria.
Meu trabalho estava
encerrado. O destino de Hugo Bonança seria agora jurisdição de outro Verbo.
Contudo, parecia-me fácil demais executar o ofício de meu colega em vista das
condições miseráveis do rapaz. Sim, eu mesmo o farei, eu mesmo o matarei. Matar
é um verbo muito ocupado. Na verdade, eu também sou. Mas às vezes as pessoas se
encarregam de imputar minhas maldições em si mesmas. Matar ficará grato ao
saber que adiantei seu trabalho, assim como as pessoas adiantam o meu.
Pois bem, Hugo Bonança.
Decline! Já apaguei o fogo de sua alma, exilei-a em uma noite fria e sem
estrelas, e sei que, na busca por calor, deixará a morte te abraçar. Continue.
Suba os degraus deste prédio de treze andares até o fim. Aproxime-se da
liberdade. Aprecie o pôr do sol. Já não consegue mais respirar a vida. Basta
meu empurrãozinho e tudo se finaliza.
Hugo Bonança se jogou.
Uma queda de sessenta
metros.
Pensou que era sonho,
que o despertador o
acordaria
duas horas antes do
horário certo
e depois iria à
faculdade.
Reveria os amigos que se
formaram antes dele.
O Ricardo, grande
companheiro de estudo que o ajudava a passar na média.
O Fabrício, leitor voraz
que lhe apresentou incontáveis literaturas.
O Mateus, o cara responsável
pelas piores piadas.
A Tânia, a garota por
quem se apaixonou, mas...
Hugo caía
rumo à escuridão.
Está feito.
Verbos podem ser
ambíguos, e eu, Deprimir, também sou capaz de matar.
Enfim, a noite caiu. Mas
a vida de Hugo Bonança, não. Era uma situação inconcebível, surreal, até mesmo
para mim. O corpo estatelado no chão havia sumido, e o rapaz se encontrava de
pé na beirada do prédio. Será o Assustar me pregando uma peça? Mesmo sem
compreender o evento, empurrei Hugo mais uma vez. Caia! Ouviu o baque de seu
corpo contra o chão, mas... sumiu! Reapareceu no terraço, encarando as rua
abaixo em estado de hesitação. Caia, Hugo! Caia de verdade. Mostre-se às
pessoas de seu círculo e, pelo menos uma vez, faça todas olharem para você.
Ele caia e não caia.
Parecia um ciclo sem fim, como se o Universo rejeitasse minha ação. Por acaso,
não tenho poder suficiente para matá-lo? Já fiz o mesmo a outras pessoas, e
elas sucumbiram. Então, por que Hugo Bonança não morria?
De repente, percebi o céu
imbuído de estrelas, muito mais do que poderia contar. Senti a presença Dele,
um dos Verbos mais poderosos, aproveitando-se da ausência de seu antagonista
para salvar o rapaz. Ele é o único Verbo com o qual travo inúmeras batalhas,
perdendo todas, exceto a última. E essa ainda não é nossa batalha final em Hugo
Bonança. Para sair desse ciclo, devolvi parte dos atributos que roubei do rapaz;
mas, um dia, os tomarei de volta. Você verá, maldito Verbo Viver!