Resenhas, artigos e contos

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Hora da Educação: críticas escolares em Assassination Classroom


E se uma criatura invencível criada na Terra, após ter destruído parcialmente a Lua, decidisse destruir o planeta daqui a um ano, e que até a chegada desse fatídico dia ele resolvesse trabalhar como professor de uma turma ginasial que tentaria assassiná-lo para salvar o mundo? Essa é a premissa básica e bizarra do mangá Assassination Classroom, de Yusei Matsui, publicado atualmente na revista Shonen Jump, e objeto de análise deste artigo cuja proposta é desfiar as críticas ao(s) sistema(s) educacional(is) escondidas nas entrelinhas dessa história de humor. Embora o contexto da trama seja a educação japonesa, há metáforas e assuntos universais no campo da educação que merecem análise reflexiva e são, portanto, condizentes com o sistema de ensino tradicional. Tentarei abordar essas questões da forma mais didática possível para que os leitores e não leitores desse mangá possam compreendê-las.

Primeiramente, faz-se necessário apresentar o protagonista de Assassination Classroom: um polvo amarelo vestido com roupa de formando (incluindo o chapéu) que consegue se mover na velocidade de Mach 20, incrivelmente inteligente e imune a qualquer tipo de munição existente (exceto a munição anti-sensei, produzida especialmente pelo Japão para matá-lo). Esse monstro transformou o satélite natural do planeta numa eterna Lua crescente para demonstrar que tem capacidade para destruir a Terra. Porém, fez o seguinte acordo com o governo japonês: trabalhará durante um ano como professor da “turma E” do 3º ano do ginasial da escola particular Kunigigaoka. Nessa turma, esse monstro foi apelidado pelos alunos de “Koro-sensei” (um trocadilho com korosenai, “imatável” em japonês). Vemos, então, um professor temido pelas autoridades. Coincidentemente, nenhum professor precisa ser um Koro-sensei para ser temido por um governo que, na pior de suas suposições, não deseja pessoas formadas com cabeças suficientemente afiadas para criticá-lo. Também nenhuma criança precisa ser aluno de um Koro-sensei para que o futuro da humanidade não dependa dela tanto quanto depende dos alunos da “turma E”. Neste mangá, a palavra “assassinar”, se olharmos mais a fundo, vai muito além do significado convencional que é explicitado na história. As tentativas de assassinato misturam-se às habilidades e conhecimento de cada aluno que, por sua vez, tem seu potencial aprimorado pelo professor (que é a vítima). “Assassinar” aqui pode ser compreendido aproximadamente como “superar as expectativas de seu professor atingindo seu máximo potencial”. Por meio dessa metáfora, podemos explorar algumas críticas presentes no mangá. Sendo assim, assassinar o Koro-sensei, o monstro que planeja destruir a Terra, de certa forma, é o mesmo que dizer que o futuro do mundo reside na educação. O acordo de destruir o planeta caso a “turma E” não consiga assassiná-lo aponta que o mundo não valerá a pena se não desenvolvermos uma “intenção assassina” em nossas crianças. Em relação ao prazo de um ano, que se encerrará na formatura dos alunos: do que adianta o aluno se formar sem ter desenvolvido o máximo de seu potencial? Por essa razão que na história o prazo final para assassinar o professor coincide com a data de formatura da “turma E”. Trata-se de uma crítica presente em muitos sistemas de ensino. Quantos alunos se formam sem realmente estarem preparados para uma nova etapa da vida, ou ainda, quantos universitários recebem um diploma sem estarem, de fato, preparados para o mercado de trabalho? Infelizmente, o sistema tradicional de ensino falha em inúmeros aspectos e não desenvolve o potencial de cada estudante, e é justamente isso o que o protagonista deste mangá procura fazer na “turma E”, pois sabe que só assim esses alunos terão alguma chance de fazer alguma diferença no mundo, como salvar a Terra.


No entanto, é impossível os alunos acompanharem a velocidade do professor. Temos nesse detalhe um aspecto interessante e frequente na sala de aula. A velocidade do Koro-sensei pode ser interpretada, em sua relação com os alunos, como o abismo de conhecimento que separa o professor do estudante. Mas, assim como tentamos surpreender nosso professor, os alunos da “turma E” executam tentativas surpresas de assassinato, elaboram planos e, vez ou outra, conseguem surpreender o Koro-sensei, que procura justamente incentivá-los a vencer a velocidade de Mach 20. Todavia, é conhecida aquela frase (enganosa) dita por nossos pais: “estude para ser alguém na vida”, cujo significado é “estude para ter um bom emprego”, que, por sua vez, significa “estude para ganhar muito dinheiro”. Os alunos da “turma E”, a princípio, só aceitaram a tarefa porque o governo propôs uma recompensa de dez bilhões de ienes (220 milhões de reais) para aquele que conseguisse destruir o monstro. Ora, não é por isso que tanto estudamos? A cada prova, a cada série, não estamos visando à recompensa monetária quando formos efetivamente produtivos no sistema capitalista? Nenhum aluno da “turma E” sentiu-se motivado a “assassinar” pelo bem da Terra, mas isso mudou após ouviram essa parte da proposta. Felizmente, no decorrer do mangá, o prêmio em dinheiro torna-se um objetivo cada vez mais distante, uma vez que os alunos começam a gozar de um ambiente no qual o professor começa a desenvolver neles algo muito mais valoroso que o desejo pelo dinheiro: uma saudável “intenção assassina”.

Ainda sobre a velocidade de Mach 20, é interessante observarmos o quão útil ela se torna para um professor. Com esse poder hipersônico, Koro-sensei pode, por exemplo, elaborar avaliações diferentes para cada aluno, pensando nos pontos fortes e pontos fracos de cada um deles. Também pode criar múltiplos clones de si mesmo para cada aluno, atendendo-os individualmente. Nesses dois exemplos podemos notar como o poder do professor procura solucionar um problema recorrente no ensino tradicional: a homogeneização. Nas escolas, cada aluno é tratado apenas como “mais um tijolo no muro”, como produtos numa linha de produção em série (tal como uma propaganda recente da prefeitura do Rio: a Fábrica de Escolas do Amanhã). A grande verdade que esse sistema renega são as diferenças óbvias entre os alunos, que necessitam de um método de aprendizado que atenda suas particularidades; porém, não há meios de fazer isso numa sala de aula com dezenas de alunos, a não ser que o professor seja um Koro-sensei.
 Porém, Koro-sensei, neste mundo há problemas que não podem ser resolvidos com velocidade.
Gakuhou Asano, diretor presidente da escola Kunugigaoka

Por mais que essa criatura seja o ser mais forte do mundo, ele ainda é um professor, e como tal, está submisso a um sistema; neste caso, ao sistema de ensino formulado pelo diretor Asano. Nessa escola as classes são divididas de acordo com o rendimento dos alunos, sendo a “turma E” destinada àqueles com pior desempenho. A localização física da “turma E” é separada das demais, isolada no alto de uma montanha próxima ao campus, numa instalação de madeira com infraestrutura precária e, por isso, também chamada de a “turma dos Exilados”. Os alunos dessa turma sofrem uma intensa discriminação pela escola, são tratados como lixos e párias pelos demais estudantes e também por professores.

A sociedade japonesa preza muito o aluno de boas notas, que se torna um orgulho para sua família e também para o seu professor. Quando um aluno tira uma nota baixa, porém, a derrota cabe não apenas ao aluno, mas também à família e ao professor, ou seja, é uma derrota coletiva. Por isso os alunos se esforçam para serem bem vistos na sociedade. Mas como, de fato, alcançar essa meta? A solução do diretor Asano foi usar o que ele chamou de “princípio de pareto das formigas operárias”, que é baseado no conhecido “princípio de pareto” ou “regra dos 80/20” (resumidamente, postula-se que 80% dos resultados que se alcança é consequência de 20% dos esforços empregados).

Em qualquer grupo, 20% são preguiçosos, 20% trabalham muito e os 60% restantes trabalham na média. O que eu almejo para esta escola é um total de 5% de “preguiçosos” e 95% de “trabalhadores”. “Não quero ser como o pessoal daquela turma (E)”, “A turma E é o único lugar para onde não quero ir”. Com 95% dos alunos pensando dessa forma, alcançaremos à proporção que idealizo.
Gakuhou Asano, diretor presidente da escola Kunugigaoka

Ou seja, os resultados alcançados são dependentes de uma minoria dos alunos, a “turma E”, uma vez que a maioria dos estudantes irão se esforçar nos estudos para não caírem para a turma dos exilados. Graças a esse sistema discriminatório, a escola é uma das mais conceituadas do país, possui alto nível de aprovação no vestibulinho do colegial e no vestibular das universidades. Temos na figura do diretor Asano o típico empreendedor que manipula a educação como um negócio, não porque se trata de uma escola particular, mas porque o desempenho da escola está acima de tudo, até mesmo da própria educação; tal como certos artistas tratam suas artes mais como negócio do que como arte. Não é muito diferente, por exemplo, daquelas propagandas em outdoors que usam a fórmula “escola X, primeiro lugar em escola técnica ou universidade Y; venha estudar na escola X”. O atrativo do colégio, então, jaz em seu desempenho, não na educação em si que ele proporciona. O sistema de ensino tradicional propagou a ideia errônea de que a educação reside nas notas de boletim, e não no esforço que fazemos para conseguir tais notas, ou seja, priorizam-se os resultados (afinal, quantos de nossos pais não se preocupam exclusivamente com nossas notas no colégio?). No mangá, há uma cena em que Asano mostra um cubo mágico e pergunta aos professores da “turma E” (que também foram contratados para matar o Koro-sensei) o que eles fariam para alinhar as cores do cubo da forma mais eficiente possível. Ele responde sua própria pergunta dizendo: “é só desmontar e remontar”. Trata-se de uma escolha que foge do exercício do pensamento (que seria resolver o cubo) em prol de um resultado final, tal como ele faz com sua escola.

No entanto, será mesmo que os alunos da “turma E” são tão burros que não conseguem acompanhar o desempenho das turmas D, C, B e A? Desde que o Koro-sensei começou a dar aulas para essa classe que a reposta é: não!

Como dito anteriormente, o protagonista é um professor que enxerga as particularidades de cada aluno, observando suas qualidades e defeitos. Tenta, ao máximo, instigar nos jovens a autoconfiança reprimida pela escola e pela sociedade, fazendo-os perceber que não é por fazerem parte da execrável “turma E” que devem se sentir inferiores, mostra-lhes que possuem capacidades únicas como qualquer outra pessoa no mundo, capacidades às vezes até melhores que as das pessoas que se dizem ser melhores. Com isso, a “turma E” consegue até mesmo revidar o bullying e a discriminação que sofre das turmas superiores, não se deixando estar submissa àqueles que estão no poder. Pode-se dizer que Koro-sensei instiga nos alunos uma aptidão revolucionária contra forças opressores, bastante efetiva no microcosmo da escola Kunugigaoka, mas que também poderá ser útil no macrocosmo da sociedade.


No mangá, há inúmeros eventos que ilustram as boas ações do professor para com seus alunos. Citarei aqui apenas dois. (1) Sugino, um aluno que integrava o clube de beisebol antes de ser expulso dele por ter entrado na “turma E”, certo dia, arremessou uma bola de beisebol adornada com munição anti-sensei contra seu professor. Obviamente, não conseguiu atingi-lo, e Sugino achou que realmente não tinha talento para o esporte. Koro-sensei acaba descobrindo que Sugino estava emulando os movimentos de um jogador famoso, e, usando seus tentáculos para “analisar” a massa corporal de seu aluno, confirma que Sugino jamais conseguirá arremessar uma bola tão rápido quanto esse jogador. Porém, o professor também afirma que Sugino possui maior flexibilidade no pulso e no cotovelo, e arremata dizendo que “não existe apenas um tipo de talento” e que ele deve “procurar um método de assassinar que combine com a sua capacidade”. (2) Okuda, uma menina muito inteligente em ciências (mas terrível em língua portuguesa e em outras matérias, o que ocasionou sua expulsão para a “turma E”), tenta assassinar o professor pedindo-o para beber um veneno que ela fez. Ela diz que não possui a habilidade de atacar de surpresa como os outros alunos, pois não tem aptidão para jogos de palavras elaborados ou o trabalho de pensar nos sentimentos dos outros e, portanto, acha que estará tudo bem se depender de equações matemáticas e fórmulas químicas. Koro-sensei resolve então ajudá-la a criar um veneno que possa matá-lo. Quando o bebe, entretanto, o suposto veneno era, na verdade, uma substância que melhora suas habilidades. Okuda reclama ter sido enganada pelo professor, e este se justifica dizendo que “para assassinar também é preciso conhecer a língua, ou não conseguirá enganar o alvo”, “para enganar alguém, é preciso conhecer a pessoa e saber trabalhar com as palavras”, “no futuro seu talento com a ciência poderá ser útil à humanidade, mas que para explicar as coisas mais claramente o possível para as pessoas ela precisará desenvolver suas habilidades com a linguagem”.

As aulas da “turma E” são preenchidas com as tentativas de assassinatos dos alunos, muito diferente de uma aula normal em que estudantes são inativos e apenas ouvem as palavras do professor. Os alunos “assassinos”, ao contrário, não são passivos, participam ativamente da aula e aprendem muito cada vez que tentam assassinar seu professor. Trata-se de uma sala de aula que, mesmo nas condições precárias de um sistema injusto, potencializa ao máximo a educação dos alunos.

Assassination Classroom é um mangá com fortes metáforas que criticam a educação em voga nas escolas. Não apresenta soluções, é verdade, mas levanta temas interessantes sobre o papel do professor e da escola em um sistema de ensino que parece desprezar o potencial (assassino) de cada aluno. Não temos um Koro-sensei em cada sala de aula, então só nos resta pensar o que podemos fazer pelo futuro de nossos jovens.

Tem que pensar que um bom professor jamais para de se questionar. Enquanto está cheio de incertezas por dentro e se pergunta se está oferecendo a melhor solução, na frente dos alunos ele faz pose de que está muito seguro de si e de que tem resposta para tudo, de modo que o aluno não perceba que, no fundo, é um poço de dúvidas. Por isso, é tão admirável ser professor 
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Koro-sensei


Texto publicado originalmente no site Literatortura

Fiquem com um mini-episódio especial da série (sem spoilers).