Plataforma: Microsoft Windows, OS X
Desenvolver: TobyFox (independente)
Lançamento: 2015
Gênero: RPG
Classificação: Livre
Jogos eletrônicos
possuem o mesmo potencial artístico que outras formas de arte. Essa afirmação,
quando não pautada em teorias complexas e insolúveis sobre “o que é arte?”,
pode parecer ingênua e duvidosa. Mas se um jogo é capaz de provocar aquele “sacolejo”
interior que sentimos durante e ao fim da experiência com um livro, uma música
ou um filme, então, por que não enquadrá-lo também como arte? De qualquer modo,
esse não é um texto para corroborar a décima arte, e sim para falar do
“sacolejo” provocado por um jogo de RPG chamado Undertale.
Produzido
independentemente por TobyFox e lançado em setembro de 2015, Undertale alcançou uma popularidade
ascendente em apenas algumas semanas e ainda garantiu críticas bastante
positivas nas reviews mundiais. O jogo possui um visual RPG retrô similar a da
era 16 bits, mas, como diz o ditado gamer “gráfico não é qualidade”, Undertale é uma delícia de criatividade
e entretenimento que muitos jogos de maior poder gráfico não conseguem
apresentar. Alguns dos aspectos que enaltecem a qualidade de Undertale são o carisma dos personagens,
o humor, a trilha sonora, o “sistema de batalha” e a quebra da quarta parede. E
tudo isso extraído de um enredo aparentemente muito simples: a jornada de uma
criança que cai dentro do buraco de uma montanha onde se encontram monstros que
foram selados pelos seres humanos após o fim de uma guerra entre eles. O
objetivo do jogador é atravessar esse submundo povoado por monstros (que vivem
de maneira relativamente civilizada por lá) e chegar à superfície.
Os parágrafos seguintes
não contêm spoilers significativos de Undertale,
mas usarei alguns exemplos para fins de análise que, talvez, possam diminuir
levemente sua experiência com o jogo, caso ainda não o tenha jogado.
Undertale
apresenta três recursos de imersão. O primeiro, e o mais comum em jogos de RPG,
é permitir que você nomeie o personagem-protagonista com seu próprio nome.
Assim, mesmo quando o jogo é em terceira pessoa, há uma primeira pessoa virtual
na tela com o mesmo nome do jogador. Pode parecer simples, mas ver a si próprio
envolvido com os dilemas morais de Undertale
irá acarretar em um peso psicológico adicional. O segundo recurso é a
neutralidade de gênero do personagem-protagonista. Seu visual andrógino permite
nomeá-lo com um nome masculino ou feminino, e ser homem ou mulher pode até
mudar a orientação sexual de algum personagem que flertar com você. O terceiro
recurso, só que mais usado no teatro, é a quebra da quarta parede, que consiste
em derrubar a parede imaginária entre o palco e a plateia, fazendo um dos
personagens se dirigir a ela. Alguns dos momentos em que isso ocorre no jogo
(de forma magistral) serão mostrados ao fim do texto.
O gênero do RPG
eletrônico popularizou-se em meados da década de 1980 e 1990 com títulos como Final Fantasy e Dragon Quest. De lá pra cá, o gênero passou por muitas inovações,
emprestando e recebendo características de outros tipos de jogos. Podemos
considerar “inovação” a palavra-chave para que qualquer trabalho artístico se
destaque entre os demais. E Undertale
consegue se destacar não apenas entre os jogos de RPG, mas também entre os
jogos em geral.
Uma definição inicial
para Undertale seria: “o jogo no qual
você pode matar ou poupar seus inimigos”. Dificilmente alguém começará a
jogá-lo sem ter essa definição em mente quando o jogo lhe for apresentado.
Somando esse detalhe aos primeiros dois minutos de gameplay, cria-se um
processo de imersão muito bem-sucedido baseado em uma simulação de tutorial em
que ocorre quebra de expectativa no jogador e desconfiança para com os
personagens apresentados que personificam as escolhas “matar ou poupar”. Essa
escolha moral vale tanto para “chefes de cenário” quanto para “monstros
aleatórios” encontrados em seu percurso.
Em Undertale, há três rotas (modos de jogar) possíveis: neutro,
pacifista e genocida. A maioria se dispõe a jogar primeiramente a rota
pacifista, já que é a única que libera o final verdadeiro (e feliz) do jogo.
Para segui-la, é preciso concluir o jogo sem matar um monstro sequer. Isso dará
a você um final neutro e a possibilidade de “prosseguir” a história para
fechá-la com o final verdadeiro. Na rota neutra, você mata um ou mais monstros
(principalmente chefes), alterando alguns desenlaces da história e fazendo um
dos variados finais neutros. Na rota genocida, o jogador não apenas precisa
matar todos os que cruzarem seu caminho como também aniquilar um número “x” de
monstros por cenário; é recomendável que essa rota seja tomada em uma última
jogada, se tiver coragem e frieza no coração.
A partir da
possibilidade de “matar ou poupar”, Undertale
faz algo que poucos RPGs se propõem a fazer: pensar no outro como alguém que
merece viver e não como um inimigo que simplesmente deve ser eliminado para
aumentar a experiência e o level do personagem. Aliás, até mesmo os termos
“lvl” e “exp” possuem um tratamento distinto neste jogo. “Lvl”, por exemplo,
não é sinônimo de “level”, mas de “love”; o que é irônico, já que o “love” só
aumenta se matamos monstros (e a razão disso será revelada perto do final
do jogo).
Esse dilema é
experimentado no peculiar sistema de batalha de Undertale. Aqui, o jogador controla um coração dentro de um
retângulo no qual ele precisa desviar dos ataques inimigos. O coração
representa a alma do personagem e é uma imagem importante para a história
(alguns elementos do jogo possuem um significado que vai além do ornamental).
Em jogos de RPG convencionais, os principais comandos a sua disposição são
“atacar”, “usar item”, “fugir” e “usar magia”. Undertale mantém os dois primeiros mais um terceiro e um quarto
chamados de “agir” e “poupar”. Por meio do comando “agir”, você pode checar o
inimigo, visualizando seu status físico e psicológico, ou realizar determinadas
ações que façam o monstro perder o interesse na luta para que, dessa forma,
você possa usar o comando “poupar”, que também conta com a opção “fugir”.
Independente de qual ação o jogador escolha antes de “poupar” ou “fugir”, o
monstro irá atacá-lo.
Vamos analisar um dos
inimigos aleatórios do jogo: Tsunderplane.O início do encontro mostra uma
mensagem de texto que diz que ela “entrou em seu caminho, mas não de propósito
ou algo assim”. Com o comando “agir”, temos três opções de “ação”: o “checar” e
outras opções que variam de inimigo para inimigo. Qualquer uma das ações,
exceto o “checar”, causará uma reação em Tsunderplane. Escolhendo “flertar”, a
caixa de mensagem diz que você falou para Tsunderplane que o tamanho da sua asa
é impressionante. Ela fica encabulada e te chama de bobo, e aparece um texto
dizendo que ela faz uma acrobacia condescendente para você. A próxima ação a
ser escolhida é “aproximar” (caso você se aproxime antes de flertar, será
rejeitado). A caixa de mensagem diz que você se aproxima de Tsunderplane, mas
não muito perto. Essa mensagem, na verdade, é uma dica para o que o jogador
deve fazer na batalha: aproximar-se dos aviões lançados por Tsunderplane. Ou
seja, a narrativa está embutida dentro do sistema de batalha. Essa
característica que mescla a personalidade e o emocional dos monstros com as
ações do jogador está presente em TODAS as batalhas do jogo, tornando cada uma
delas uma experiência única. Mas, se quiser, você pode preferir a opção mais
simples: matá-los.
As implicações
significativas que resultam de “matar” ou “poupar”, no entanto, valem apenas
para os chefes de cenário. Estes são especialmente difíceis de matar, mas não
porque suas batalhas sejam complicadas, e sim porque você se apega demais a
eles. Os personagens de Undertale
possuem um carisma apelativo justamente para que o jogador se sinta
desconfortável em matá-los. No início do jogo, somos apresentados a Toriel, que
assume a função de “mentora” e, principalmente, “mãe” para o personagem. Toriel
apenas quer mantê-lo nas ruínas, o primeiro cenário do jogo, para que Asgore, o
rei do subterrâneo, não tome sua alma. Mas você precisa sair! E Toriel vai
estar lá para impedi-lo! O que fazer? Essa situação angustiante terá de ser
resolvida pelo jogador durante a batalha.
Apesar do grande peso
psicológico, Undertale é um jogo
divertido que abusa de um humor afiado durante boa parte de sua interação com
os personagens. Trata-se de um humor que, assim como ocorre na relação entre a
narrativa e a batalha, tira proveito da própria mecânica do jogo. Por exemplo,
em alguns pontos de save, existe uma mesa com queijo (às vezes não tão fácil de
ser pego) e a toca de um rato na parede. Clicando para salvar, aparece uma
mensagem dizendo “saber que o rato pode sair um dia de sua toca e pegar o
queijo, isso te enche de determinação” (e vale ressaltar que “determinação” não
é uma palavra gratuita no jogo). Outro exemplo é quando a fonte de texto na
caixa de diálogo de um personagem cômico chamado Sans é comicsans.
A trilha sonora também
é digna de elogios e usada de forma inteligente (ultimamente tenho escutado-a
freneticamente no youtube). Quase todas as músicas são animadas, com o fim de
encher o jogador de determinação. Aquelas que tocam durante a batalha
transmitem perfeitamente seus sentimentos com relação ao inimigo e a personalidade
dele. “Heartache”, por exemplo, apesar de animada, consegue evocar a mágoa que
sentimos em ter que lutar contra Toriel. Noutro exemplo, caso você opte pela
rota genocida, a música do cenário se tornará mais lenta, como se representasse
um grau menor de vivacidade, tendo em vista que você está eliminando mais e
mais a sua empatia pelos outros.
Mas nenhuma outra
característica de Undertale se
aproveita tanto da linguagem dos games quanto a quebra da quarta parede. Toda
forma de arte possui sua própria linguagem, e algumas obras experienciam essa
linguagem mais do que outras. Há determinados livros, por exemplo, cuja
linguagem é tão relevante, que sua adaptação para outra mídia subtrai muito da
essência da obra original. Algo semelhante acontece em Undertale. Certos personagens, incluindo o protagonista, sabem que
tudo isso é um jogo e que há um jogador do outro lado da tela, sabem também que
ele tem o poder de resetar o jogo e, assim, criar várias linhas do tempo. Uma
vez que o jogo sabe da existência do jogador, este poderá se surpreender com
alguns eventos imprevisíveis que ele próprio gerou ao matar ou poupar os
personagens. Essa característica de causa e consequência ocorre principalmente
quando você começa a rejogá-lo a partir da segunda vez após zerá-lo ou quando
executa um reset durante o jogo por arrependimento de algo que tenha feito. Um
exemplo interessante da quebra da quarta parede ocorre na rota genocida, quando
um personagem diz ao jogador que ele é diferente dos outros (jogadores) que preferem
assistir a isso em vez de realmente fazê-lo. Ele está fazendo referência aos
jogadores que, não tendo a frieza e a coragem necessária para ser um genocida,
optaram por assistir alguém fazê-lo em um canal do youtube. Como se não
bastasse isso, o personagem ainda diz que aposta que eles estão te assistindo
fazer isso nesse exato momento, referindo-se ao youtuber que está fazendo a
gameplay gravada ou ao vivo. Essas características, portanto, eliminam a
passividade do jogador e o torna ativo na história.
Um último ponto
interessante sobre Undertale é sobre
considerá-lo um jogo extremamente violento. Não me refiro a uma violência
explícita a qual muitos games se baseiam, mas em uma violência psicológica. Em
games comuns, quando o jogador se depara com algo que o ataca, ele o toma como
inimigo e o mata. Com o tempo, isso torna-se um puro ato de reflexo com os
botões do controle/teclado e que não passa por nenhum processo de ponderação.
Em Undertale, por outro lado, o ato
violento para com o inimigo é um ato consciente, pois ele passa pela reflexão
entre matá-lo ou poupá-lo. Assim, embarcar na rota genocida faz o jogador
experienciar uma violência tão pulsante que o enche de remorso. Muitos dos que
jogaram por essa rota ficaram com um sentimento de angústia ao fim do jogo.
Por esses e muitos
outros detalhes não revelados nesse texto que Undertale conquistou rapidamente a aprovação do público em apenas
alguns meses. Nesse meio tempo, já surgiram fanarts, fangames e fananimations
criados por fãs, além de explosões de reviews e textos indicando Undertale para aqueles que ainda não
conhecem essa obra-prima.
(Ao fim da leitura
deste texto, você se enche de determinação.)